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Artigo “Cidades dependem de seus moradores”

Estudando as cidades medievais, o pensador italiano Aldo Rossi estimava que em duas gerações a população de uma cidade mudava substancialmente. O permanente era o ambiente construído, que garantia a estabilidade da ideia da cidade, o seu espírito.

 

Talvez esta avaliação de Rossi já não baste. Nos últimos 50 anos, duas gerações, houve uma verdadeira revolução planetária. Na cultura, mudaram-se conceitos éticos, de estética e de gênero, entre outros. Na produção, rompeu-se a hegemonia do emprego permanente e emerge o trabalho mutante. Nas relações sociais, ampliam-se, em simultâneo, as possibilidades de interação pessoal e de interação por novas mídias; a troca de informações se potencializa.

 

No mesmo período, no Brasil, adicionalmente, as cidades sofreram em sua configuração uma mudança radical, com a expansão vertiginosa da ocupação territorial e a explosão demográfica. (O país quase triplicou sua população.)

 

Nesse contexto de tanta mudança, o espaço da cidade pode ainda representar a estabilidade? Até que ponto o “espírito do lugar” pode ser preservado? No caso do Rio, é possível aspirar a sermos ainda a Cidade Maravilhosa?

 

Ora, o Rio não é caso singelo. Além das mudanças gerais, teve doses maciças de transformações endógenas, conjugadas com a saída da capital e dos melhores empregos, com degradação ambiental, das águas e das terras, e serviços públicos que não acompanharam a cidade. A cidade tornou-se disfuncional. É de se reconhecer um distanciamento entre o Rio e o seu espírito, fundado na noção de bem-aventurança.

 

Hoje, talvez o mais significativo desafio para o espírito carioca decorra do embate entre a cordialidade que o caracteriza e a violência que tenta submetê-lo.

 

O Rio, porém, não está sozinho; o que não é consolo, é apenas realidade. O sistema de cidades brasileiro passa por uma crise igualmente grave, inconteste, que impacta o desenvolvimento nacional e realimenta o problema urbano.

 

Contudo, como a história nos demonstra, e Roma, Lisboa e Berlim são exemplos, uma cidade pode reerguer-se para novos ciclos de vitalidade.

 

Isso não se dará por passe de mágica. O tempo da varinha de fada madrinha do governo central, que socorria ante o barulho das ruas, já passou. Os governos estão entregues a suas emergências. Assim, está em nós, nos cidadãos, o condão. No Rio, nos 12 milhões de cariocas metropolitanos que têm amor pela cidade está a possibilidade de traçar o seu destino.

 

Ano que vem teremos eleições locais. Será temerário apostar nos novos mandatos como fator determinante de novos tempos. Mas 2020 pode ser, sim, determinante, caso corresponda a um efetivo desejo de convergirmos para consensos acima das idiossincrasias político-partidárias e voltarmos nossos esforços para o que poderá nos unir: a melhora do ambiente urbano e oportunidades para o desenvolvimento social e econômico.

 

Não será fácil. Mas, vendo o que as mídias sociais mostram, onde inúmeros grupos se articulam com esse mesmo propósito de reerguer o Rio, é possível termos esperança. Vendo como há instituições sociais maduras, com responsabilidade em relação ao desenvolvimento, é possível ter um otimismo moderado. E, diferentemente de antes, o elemento catalisador não será o salvador que tem as respostas prontas, é outro. Ele é difuso, percorre todas as partes da sociedade, envolve os agentes privados e os agentes públicos, os movimentos sociais, as empresas; ou seja, o novo catalisador precisa ser a vontade coletiva.

 

O Rio pode reencontrar-se com o seu espírito. E, compondo-se com a sua história, esse reencontro será também uma iluminação para o país.

 

 

Por Sérgio Magalhães, arquiteto e urbanista, ex-presidente do IAB Nacional.

 

Fonte: O Globo

 

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