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Um ano sem Lelé – artigo de Haroldo Pinheiro no Correio Braziliense

Hospital Sarah Brasília. Projeto de João Filgueiras Lima (Lelé). Foto: Nelson Kon

 

No 15º ano deste Século XXI, organizações ambientalistas de todo o mundo ainda buscam um comprometimento geral com a construção de edifícios e espaços públicos que proporcionem cidades mais saudáveis, sustentáveis, resilientes e equitativas. A União Internacional de Arquitetos, em recente assembleia geral realizada na África do Sul, aprovou a resolução denominada “Imperativo 2050”, pela qual propõe ações objetivas para redução a zero nas emissões de carbono na construção das cidades até o ano 2050 – meta dramaticamente necessária diante dos relatórios elaborados por cientistas de diversas nações, corroborados nas conferências da ONU sobre mudanças climáticas.

 

Pois bem… Hoje faz um ano que perdemos um arquiteto que trilhou o caminho de respeito ao planeta e compromisso com o futuro desde ainda jovem, aqui, no início da construção de Brasília e ao longo de sua admirável e profícua vida profissional. João da Gama Filgueiras Lima – o Lelé –, arquiteto de raro talento e superior domínio sobre a arte e a técnica do projetar e construir, realizou, em quase 60 anos de vida profissional, obra tão bela quanto coerente com princípios éticos bem estabelecidos e determinadamente perseguidos.

 

Nos primórdios de Brasília, já antecipava suas motivações nos canteiros de obras pré-construídos, com galpões reaproveitáveis, e na construção de casas e edifícios que primavam pela agilidade e redução de desperdício. Nas últimas décadas, as fábricas públicas que idealizou produziram escolas e pontes em Abadiânia ou no Rio de Janeiro; creches e equipamentos urbanos em Salvador ou Belo Horizonte; primorosos hospitais para a Rede SARAH em Brasília e outras várias cidades brasileiras… Em tudo e sempre, a progressiva evolução no domínio das tecnologias mais contemporâneas e inventivas, atentas às condições sociais e culturais locais, sempre aplicadas a fazer mais – e melhor – com menor utilização dos recursos que a Natureza oferece e baixo impacto sobre o sítio preexistente.

 

Tais cuidados, somados ao aproveitamento da iluminação e da ventilação naturais (ambas eventualmente potencializadas por equipamentos complementares) e ao bom senso no uso do ar condicionado, o conduziram a uma estética original e bela desde o processo construtivo – lúdicos jogos para montar obras complexas, com zero de desperdício material – e resultaram em prédios dinâmicos, com espaços e instalações adaptáveis às mudanças determinadas por novos e imprevisíveis programas de necessidades.

 

Ações estudadas, desenvolvidas por qualificada equipe de especialistas nas diversas matérias envolvidas na construção, desembocaram com naturalidade num novo desenho arquitetônico, de personalidade e beleza singulares, que tanto orgulhou aos seus mestres Lucio e Oscar, assim como entusiasmou seus aprendizes – eu mesmo, entre tantos outros que tiveram a rara oportunidade de conviver com o Doutor Lelé, que também não se furtava a “meter a mão na massa” nas obras que conduzia.

 

Operário, Mestre de obras, Doutor. Reconhecido por universidades federais, laureado por organizações nacionais e internacionais, Lelé equacionou tecnologias complexas para domínio e uso por pessoas simples. Obras de arte “prêt-à-porter”, como bem definiu Pietro Maria Bardi, foram montadas em favelas do Rio de Janeiro, nos alagados de Salvador, à beira do Lago em Brasília. Realizadas em áreas paupérrimas ou abastadas, sempre com a mesma qualidade projetual e construtiva – invariavelmente integradas com a arte de Athos Bulcão e o paisagismo de Alda Rabelo –, alegraram espaços públicos e a paisagem urbana de tantas cidades.

 

Nos últimos anos, Lelé planejou bairros para pobreza extrema, com habitação, serviços e espaços públicos dignos e baixo custo de implantação no tecido urbano de Salvador, por solicitação do Governo Federal para o Programa Minha Casa Minha Vida. Chegamos a vislumbrar a retomada da prática saudável dos anos 1950 e 60, quando arquitetos talentosos – como Reidy e Artigas – eram chamados para resolver problemas sociais e urbanísticos mais difíceis. Lamentavelmente, as regras de um Programa criado essencialmente para a liderança das empreiteiras impediram sua realização; mas os projetos e planos de execução – completos e bem detalhados – ficam guardados, à espera de uma administração pública mais sensível à qualidade na construção das nossas cidades.

 

Apesar do enorme acervo realizado, a obra do Lelé vem sendo progressivamente deformada por reformas que desprestigiam sua inteligência e beleza originais – exceção honrosa para os hospitais da Rede SARAH, os que ainda permanecem inteiros e bem cuidados. Talvez já esteja passando da hora dos órgãos de preservação cultural, e do próprio IPHAN, agirem! Ainda é possível guardar um pouco do que de qualidade se ousou fazer em nosso tempo.

 

Clique aqui e leia depoimentos da esposa e das filhas sobre Lelé

 

Clique aqui e acesse à página especial do CAU/BR com entrevista exclusiva e inédita de Lelé

 

 

 

Publicado em 21/05/2015. Fonte: Correio Braziliense.

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Uma resposta

  1. Me incomoda muito estes textos homenagem que, em uma necessidade avassaladora, mata nossas grandes referências.
    É necessário rever o título deste artigo. Pois, exceto vcs do CAU, nós, arquitetos, não deixamos de viver Lelé, viver com Lelé.
    Eu, natural de MG e discente da FAU/UFBA, vivo com Lelé ao passar férias em BH e, todos os outros dias do ano, ao entrar na sala da aulas do PPG-AU UFBA, ou quando o uso como referências em meus estudos.
    Lelé vive.

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