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“Carta a um amigo arquiteto”

 

Meu caro amigo, faz quase um ano que você trocou o Rio por esse lado do mundo onde o sol se põe quando aqui amanhece. Espero que a tua experiência de morar em um país com hábitos culturais tão diferentes dos nossos esteja sendo gratificante. Confesso que sinto falta daqueles nossos papos intermináveis regados a boas doses de uísque e muita conversa jogada fora. Afinal, não dá pra falar sério o tempo todo.

 

Por aqui, o convívio social anda meio complicado. A agressividade parece ter tomado o lugar do humor carioca. Ressuscitaram os velhos discursos da esquerda raivosa e de uma direita tão ou mais reacionária do que na época do regime militar. As mensagens nas redes sociais estão impregnadas de discursos radicais e dogmáticos. Agride-se o outro sem qualquer motivo. O diabo tá solto, meu caro. Todo cuidado é pouco para não perder antigas amizades.

 

Lamento dizer que aquela alegria das ruas que compartilhamos durante os jogos olímpicos durou somente até o período das eleições. De lá pra cá a situação só fez piorar. O governador não faz outra coisa senão mendigar recursos no planalto central para cobrir os malfeitos deixados pelo seu antecessor. O prefeito eleito ainda não disse a que veio. Seu governo se assemelha a uma orquestra com alguns músicos competentes dirigida por um maestro que pouco entende de regência. O resultado é a desafinação total.

 

Pasme você que durante uma visita recente à Rocinha, durante um intervalo dos tiroteios entre facções criminosas, o prefeito afirmou que aquela comunidade precisava mesmo era de “um banho de loja”. Em seguida, disse que iria mandar “tapar os buracos feitos pelas balas de fuzil” nas paredes das moradias. Os moradores dessa comunidade devem estar perplexos diante de tanta insensatez. Dias depois, ele se manifestou contra a liberdade de expressão artística ao impedir a utilização do MAR para uma exposição que, segundo ele, atentava contra a moral do cidadão. Ironicamente, afirmou que essa exposição deveria ser instalada no “fundo do mar”.

 

Ao escolher como slogan para o seu governo a expressão “cuidar das pessoas” não se tocou para o fato de que melhorar as condições de vida na cidade é uma forma indireta de atender a esse objetivo. Não dá para pensar em uma cidade mais justa encarando a realidade do mesmo modo de quando atuava pela Igreja Universal. Ao que parece, elegemos um pastor ao invés de um gestor. Nada justifica a sua inoperância e o distanciamento das funções que lhe são atribuídas. Houve, de fato, uma perda de foco na cidade.

 

Não há nenhum projeto concreto que responda às demandas de mais de um milhão e meio de pessoas que vivem precariamente em cerca de mil e tantas comunidades espalhadas pela cidade. Há que somar a esse expressivo contingente populacional, aqueles que dormem nas ruas e os miseráveis que por não terem o que comer se alimentam com os restos de comida catados nos latões de lixo dos restaurantes. Sem contar os viciados em crack que sobrevivem em verdadeiros guetos de desamparados.

 

Nós sabemos de longa data que em contextos de escassez de recursos, de contrastes sociais acentuados e de níveis alarmantes de desemprego, intervir na cidade não é tarefa para qualquer um. Com a desculpa de atenuar o alto índice de desemprego, o prefeito liberou demagogicamente a ocupação das calçadas para vendedores ambulantes, sem atentar para as graves consequências de tal atitude. Além de dificultar a circulação de pedestres e comprometer as lojas na vizinhança, a falta de fiscalização possibilitou que bandidos envolvidos em roubos de carga e contrabando de mercadorias utilizassem boa parte desses espaços para comercializar produtos ilegais. Reverter esta situação, certamente, não será uma tarefa fácil.

 

Você que vive hoje em uma grande cidade e circula sem medo a qualquer hora do dia e da noite, não iria acreditar no que o Rio está passando por conta da violência urbana. Depois de um período de aparente tranquilidade, vivemos um momento de grande tensão por saber que podemos ser assaltados e mortos a qualquer instante e sem motivo aparente. A certeza da impunidade está contribuindo para a banalização da criminalidade. Enquanto isso, as estratégias de longo prazo para enfrentar tal situação continuam colocadas de lado.

 

Na verdade, meu amigo, eu gostaria de lhe falar de coisas agradáveis, mas, desta vez, não foi possível. Como otimista que sou, acredito que mais cedo ou mais tarde iremos superar essa triste realidade com iniciativas da própria sociedade. Enquanto isso não acontece, vamos continuar trocando nossas ideias e discutindo novas perspectivas para recuperar a qualidade de vida perdida em nossa cidade. Esperando notícias suas, me despeço com um forte abraço.

 

 

Fonte: O Globo

 

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Uma resposta

  1. Triste realidade de uma cidade dita Maravilhosa.

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