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Falece o arquiteto e museólogo Júlio Abe, criador do pioneiro Museu de Rua

O arquiteto e urbanista, museólogo, fotógrafo e artista plástico Júlio Abe Wakahara faleceu em, São Paulo,  em 21/11/20, aos 79 anos de idade.

 

Júlio Abe deu uma enorme contribuição ao patrimônio intangível,  colocando em prática o conceito de museu como agente de transformação social, como foi ressaltado em janeiro desse ano ao receber  a Medalha de Mérito Museológico Waldisa Rússio Camargo,  Guarnieri concedida pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do governo do Estado de São Paulo.

 

Uma de suas realizações foi o pioneiro Projeto Museu de Rua (1977-1979 que desenvolveu junto ao Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura de São Paulo.

 

 

 

O Projeto consistia em exposições montadas em espaços públicos, difundindo a história e os costumes dos bairros paulistanos, mostrando o crescimento urbano da metrópole através de imagens antigas posicionadas nos mesmos lugares onde haviam sido originalmente tiradas. O Projeto deu importante contribuição para dessacralizar os museus, levando seus acervos para fora das quatro paredes, ressaltou publicação do IPHAN. Entre 1977 e 2013 foram realizadas 80 exposições do gênero. A metodologia foi adotada por diversas outras cidades.

 

Largo São Francisco, São Paulo
Largo São Francisco, São Paulo

 

 

Vale do Anhangabaú, São Paulo
Vale do Anhangabaú, São Paulo

 

Júlio Abe fez graduação e mestrado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, da qual foi professor de Comunicação Visual na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo entre 1970 e 1983. Foi  também professor de museologia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo entre 1970 e 1980. Dirigiu a Divisão de Museus da Prefeitura do Município de São Paulo e a Divisão de Difusão Cultural do Centro Cultural São Paulo.

 

“O professor deixa um legado inestimável para a cultura e a museologia nacional, onde foi pioneiro”, afirmou a Escola de Sociologia e Política.

 

“Ele era o homem do fazer – em quaisquer sentidos que essa caracterização possa ter”, escreveu o arquiteto e urbanista Hugo Segawa em texto homenagem publicado em sua página no Facebook (ver íntegra abaixo).  Ele lembra que, em certa ocasião, Júlio Abe afirmou: “parece que sou muitas coisas, mas na realidade não sou nada, porque no meio de arquitetos, eu digo que sou fotógrafo, no meio de fotógrafos, eu digo que sou museólogo e assim por diante.”

 

Júlio Abe também criou centros de memória empresarial.  Participou da organização de exposições como a história do Teatro Municipal de São Paulo e coordenou a organização e catalogação do acervo do Museu do Bixiga. “Com seu jeito simples, mas muito profissionalismo,  junto com Waldisa Rússio, ele deu ordem na casa, conquistando a amizade de todos no bairro. Eles foram gigantes. Uma perda irreparável”, declarou Paulo Santiago, diretor do museu mantido sem verba pública.

 

“Julio é uma das referências mais importantes da museologia em São Paulo e no país. Uma perda irreparável”, afirmou em nota de pesar o Conselho Federal de Museologia.

 

Um dos maiores colecionadores particulares da iconografia paulistana manifestava seu desejo de deixar o seu acervo disponível para consultas em ambiente digital. O acervo tem mais de 40 mil imagens.

 

O arquiteto e urbanista presidiu o Conselho Regional de Museologia (IV Região – Estado de São Paulo). Foi membro da Diretoria do Conselho Federal de Museologia. Foi Conselheiro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Foi Conselheiro do Museu da Casa Brasileira. Foi Conselheiro do Museu da Imigração de São Paulo.

 

Em 2014 recebeu o Prêmio Murilo Marx / Memória concedido pelo Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo.

 

Em 2017, indicado pelo COREM IV e outorgado pela COFEM, Júlio recebeu a Medalha do Mérito Museológico.

 

Também em 2017, recebeu a Medalha Mário de Andrade, concedida pelo IPHAN,  durante as comemorações de 80 anos do Instituto.

 

 

O PORÃO E A RUA: UMA ESCOLA SEM SALA DE AULA
Por Hugo Segawa, arquiteto e urbanista
O Júlio Abe Wakahara (1941-2020) será lembrado na FAU USP pelos colegas, alunos e alunas que vivenciaram a escola nos anos 1970 e começo dos anos 1980, período em que foi professor em Programação Visual do Departamento de Projeto. Ele se desligou da FAU para se dedicar mais ao trabalho que o notabilizou: o Museu de Rua.
Nos últimos seis anos ele foi reconhecido por esse extraordinário trabalho: Prêmio Murillo Marx na categoria Memória em 2014, concedido pelo DPH – Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo, Medalha Mário de Andrade, por ocasião dos 80 anos do IPHAN em 2017, e Medalha de Mérito Museológico pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo em 2019.
Filho de imigrantes japoneses que se estabeleceram em Cravinhos, na região de Ribeirão Preto, foi da turma que se graduaria na FAU USP por volta de 1968; como sabemos, poucos são aqueles que regularmente se formam em cinco anos. Começou a fotografar trabalhando no antigo SPHAN, ainda no tempo de Luís Saia (1911-1975). Daí para frente, foi se envolvendo em um campo, naquela época, restrito a poucos interessados: o patrimônio cultural. A máquina fotográfica e o estúdio/laboratório foram seus instrumentos de trabalho nessa seara em que ele foi um dos pioneiros em São Paulo e no Brasil.
Não cabe neste pequeno espaço esmiuçar sobre o Museu de Rua. Júlio não era um homem de palavras escritas, e fazia questão de afirmar sua condição de um “prático”. O único texto dele que conheço, ele não escreveu, mas falou, como conferencista convidado, e foi transcrito: está nos Anais do 1º Congresso Latino-americano sobre a Cultura Arquitetônica e Urbanística, organizado pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, em junho de 1991, a respeito da experiência do Museu de Rua.
Ali ele diz que vai fazer um “relato de experiência. Não é um trabalho teórico e nem vou falar sobre a teoria de patrimônio ou sobre museus. Relato de experiência é uma forma de apresentação que se utiliza em encontros de artistas. Não em encontros de teóricos. Aqui a maioria é de teóricos, então, no caso, eu me sinto um pouco com medo de chegar a falar sobre teoria.” Avesso à teoria, era respeitado e admirado por teóricos como Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses.
Ele era o homem do fazer – em quaisquer sentidos que essa caracterização possa ter. Falou na conferência: “parece que sou muitas coisas, mas na realidade não sou nada, porque no meio de arquitetos, eu digo que sou fotógrafo, no meio de fotógrafos, eu digo que sou museólogo e assim por diante.” Ele tinha registro no CREA e no COREM.
Ao lado da figura que se notabilizou como o criador do Museu de Rua, há o professor, designer gráfico e fotógrafo com seu pequeno estúdio. Na segunda metade dos anos 1970 Júlio era sócio do Cláudio Tozzi, também professor da FAU, e foi no porão do sobrado da rua Antônia de Queiroz, 52 (ele e sua família moravam nos pisos superiores), que eles desenvolveram os projetos gráficos dos folhetos e cartazes para a Pinacoteca do Estado, então dirigida por Aracy Amaral. O Júlio fazia de tudo. Recordo-me dele revelando o cartucho do filme e ampliando as fotos que tomou do set de filmagem, com Denise Bandeira e Juca de Oliveira contracenando em À Flor da Pele, filme de Francisco Ramalho Jr. de 1976, que ganhou o prêmio de melhor filme do Festival de Cinema de Gramado de 1977. Se alguém reparar em uma das cenas do filme, há um livro cuja capa o Júlio inventou – não sei o porquê.
Aquele porão – que era os baixos de um casario que não existe mais – era uma extensão da FAU. De alunos e professores. Quando havia alguma reprodução urgente, alguma demanda ou problema de fotografia, era o laboratório que gente como Benedito Lima de Toledo, Carlos Lemos, Antônio Luiz Dias de Andrade (o Janjão), Murillo Marx, Ana Maria Belluzzo ou Aracy Amaral apelavam, e o Júlio ou um de seus “assistentes”, resolviam. “Assistentes” é um modo de dizer: muitos estudantes da FAU circulavam por lá, dia e noite, porque não havia um expediente, mas tarefas a cumprir.
Ademais, o Júlio era generoso a ponto de deixar o laboratório livre para quem precisasse, para uso privado. Não era somente a câmara escura e a química; ele tinha um estúdio de fotografia, mesa para reprodução, câmara de negativos de chapa, fotômetro e uma Hasselblad que ele emprestava a quem confiava. Aprendi a mexer nessa parafernália fotográfica frequentando aquele porão.
Ele passou serviço para o Jonas Tadeu Malaco (que foi professor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da FAU), que então acabava de sair da prisão, “condenado” por “subversão.” O José Salles Costa Filho, hoje radicado em Fortaleza, era um frequentador do porão, quando fazia parte do grupo de estudantes que mais tarde se tornou o Brasil Arquitetura.
Antes do reconhecimento como museólogo, Júlio era um requisitado, mas reservado fotógrafo de arquitetura. Ele atendia aos amigos e à arquitetura que ele gostava. Dava para contar na mão os fotógrafos de arquitetura realmente competentes nos anos 1970 em São Paulo: era o Moscardi Filho, o Júlio Abe e o Cristiano Mascaro; o João Xavier era um fotógrafo bissexto naquela altura. Além do trabalho para o IPHAN (ele fotografou as Missões no Rio Grande do Sul) e Condephaat, a documentação dessa época da obra do Décio Tozzi e Eduardo de Almeida era com ele. Como “assistente”, cheguei a fazer fotos para Dácio Ottoni.
Esse trabalho mais fragmentado foi diminuindo na agenda do Júlio à medida que ele foi se dedicando ao Museu de Rua, primeiro a serviço da Secretaria Municipal de Cultura, depois como iniciativa de seu escritório para vários municípios. A partir de um momento, com o auxílio de seu filho Cláudio, também formado na FAU.
Victor Hugo Mori, arquiteto do IPHAN, próximo a ele em tempos recentes, conta que o Júlio, ao final da vida, passava por dificuldades financeiras. No projeto do Museu do Anhanguera em Santana do Parnaíba, insatisfeito com o resultado, acabou estourando o orçamento para fazer melhor. Victor Hugo e o Francisco Dias de Andrade – filho do Janjão – o ajudaram para finalizar o trabalho.
O empenho à causa tinha uma simetria humana: Odair Carlos de Almeida foi o arquiteto que compartilhou com Júlio o levantamento das ruínas de São Miguel das Mis-sões em 1974, e que veio a falecer anos depois. Atendendo ao último desejo do amigo, ele e a viúva, Marli, dirigiram-se para as Missões para lá espalhar as cinzas de Odair. Ele custeou o velório e a viagem para o Rio Grande do Sul. No dia da concessão da Medalha Mário de Andrade, Victor Hugo recorda do humor peculiar de Júlio, que lhe disse: “quando a gente começa a receber medalhas é sinal de que estamos indo embora.”
Não sei se suas contribuições para a Museologia foram contadas. Se ainda não, precisa ser.
Hugo Segawa
São Paulo, 21 de novembro de 2020
Foto: Victor Hugo Mori – Julio Abe Wakahara no dia da concessão da Medalha Mário de Andrade pelo IPHAN, 11 de dezembro de 2017.

 

 

 

 

 

Veja também:

Museu de Rua Digital: Imagem da cidade como memória em rede

Júlio Abe e seu acervo fotográfico

 

 

4 respostas

  1. Júlio, grande profissional e grande amigo. Estava trabalhando conosco na implantação do Museu Arqueológico e Histórico do Oeste Paulista em Pres. Epitácio-SP. Cada encontro com ele uma aula sobre história dos povos indígenas. Vai fazer muita falta. Descanse em paz meu amigo.

  2. Arqtº Julio, grande pessoa, devo muito a ele, na minha carteira profissional os três primeiros empregos foram por indicação/recomendação dele. Meus pesares aos filhos Claudio e Beto. Fizemos junto muitos trabalhos e guardo comigo boas recordações dele, fará grande falta.

  3. Vale acrescentar que o Júlio Abe fez fotografias para o Sergio Pileggi & Euclides de Oliveira. O que o Júlio fez não cabe em duas laudas.

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