Habitat III

Habitat III: Sennett, Sassen e Burdett propõem uma “nova Carta de Atenas”

Imagem destacada habitatAté que ponto os arquitetos e urbanistas estão suficientemente informados e concordam com o papel transformado que lhes cabe na implementação da Nova Agenda Urbana aprovada no dia 20 de outubro de 2016 na Habitat III, em Quito, no Equador? Essa pergunta ficou no ar depois das palestras que dois renomados sociólogos, o casal Saskia Sassen e Richard Sennett; o urbanista Ricky Burdett, diretor do Departamento de Sociologia da London School of Economics and Political Science; e Joan Clos, diretor-geral da UN Habitat, fizeram durante a Terceira Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável.

 

A partir da esquerda, Joan Clos, Saskia Sassen, Richard Sennett e Ricky Burdett (Foto: Secretariado do Habitat III)
A partir da esquerda, Joan Clos, Saskia Sassen, Richard Sennett e Ricky Burdett (Foto: Secretariado do Habitat III)

 

O documento resultante da conferência, com 175 parágrafos, aponta diretrizes para a transformação das cidades em ambientes mais justos, seguros, saudáveis, acessíveis, economicamente vibrantes, resilientes e sustentáveis, e lista uma série de compromissos para os países membros da ONU. Mesmo não tendo caráter impositivo, um dos compromissos trata do Direito à Cidade para todos e indica a necessidade de uma reorientação da forma como planejamos, desenvolvemos e governamos nossas cidades.

 

Clique aqui para conhecer os 30 pontos chaves da Nova Agenda Urbana

 

O norte-americano Richard Sennettt, professor da New York University and the London School of Economics, autor de “O declínio do homem público”, que trata da corrosão do caráter na sociedade moderna, agora se dispõe a desconstruir o mito da Carta de Atenas escrita pelo arquiteto Le Corbusier, suíço naturalizado francês.

Clique aqui para acessar a íntegra da Carta de Atenas

 

Manifesto de conclusão resultante do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), realizado na capital da Grécia em 1933, a Carta defende uma cidade racional, eficiente e livre de conflitos, com divisões claras entre as quatro funções de uma cidade (habitação, trabalho, lazer e circulação), tendo influenciado de forma marcante o planejamento urbano ocidental após a Segunda Guerra Mundial. Incentivou, por exemplo, a construção de torres com espaços abertos ao seu redor, aos poucos transformadas em condomínios fechados, totalmente dependentes do uso do automóvel, ainda que tivesse como visão a melhoria da saúde pública e o equilíbrio da densidade populacional.

 

Foto: Habitat III Conference
Foto: Habitat III Conference

 

Para Sennett, ao tratar as cidades como se todas fossem iguais, sem considerar sua geografia e componentes sócio-econômicos, a Carta optou pela simplificação, ao invés de encarar o desafio da complicação da vida urbana. “O sonho dos modernistas destruiu as cidades”, diz. Ao que Saskia Saken, professora da Columbia University, formuladora do termo “cidade global”, complementa: “falar da cidade hoje é falar da perda massiva de habitat”.

 

“A Carta levou a um sistema fechado”, diz o britânico Ricky Burdett, com forte atuação no planejamento urbano atual de Londres. Juntos, eles estão elaborando os Documentos de Quito (“Quito Papers”), publicação que a revista New Yorker já definiu como “a nova Carta de Atenas”. Joan Clos foi o grande incentivador do trabalho. “O manifesto de Le Corbusier parece mais uma ficção”, segundo ele.

 

Joan Clos, diretor-geral da UN Habitat. Foto: Habitat III Conference
Joan Clos, diretor-geral da UN Habitat. Foto: Habitat III Conference

 

CIDADES POROSAS – Numa crítica ao excessivo planejamento, Richard Sennett diz que as cidades devem ser vistas como “complexas e síncronas”, “incompletas” e “porosas”.

 

“A praça Nehru em Nova Delhi é o espaço público mais complexo que eu conheço. Ali convivem vendedores de sari, reparadores de celulares, moradores de rua e centros de inovação tecnológica. Tudo ao mesmo tempo, sem que exista qualquer sinergia entre uma coisa e outra”.

 

O segundo aspecto é que a cidade, por ser um sistema aberto, é incompleta. “A cidade tem um começo mas não um fim já determinado. O ponto chave é seu processo de crescimento que não se consegue definir com certeza sua forma. Mesmo assim os planejadores urbanos continuam fazendo esforços para se anteciparem às tendências”.

 

Um terceiro ponto a ser observado, diz ele, é a necessidade de construirmos cidades “porosas”, em contraponto às “cidades fechadas” que tem seus interiores totalmente planejados. Ele faz uma analogia entre bairros e células, com seus interiores previamente definidos, quando deveriam estar vazios a ponto de permitir que os cidadãos definam suas funções.

 

“As membranas que envolvem as células expulsam certos ingredientes que deveriam ser permitidos, não há intercâmbio entre elas. Seus limites são mortos, pois o planejamento dá mais atenção aos centros do que às bordas. “As cidades são lugares de estranhos que se relacionam nos limites e por essa razão deveriam facilitar a capacidade dos cidadãos darem e receberem e não ficarem isolados”.
O sociólogo fala por experiência própria, pois passou parte de sua infância em um projeto habitacional de inspiração corbusiana, o Cabrini-Green, em Chicago, com mais de 3.600 unidades. Suas últimas torres foram demolidas em 2011 pela decadência do lugar que acabou dominado por gangues criminosas. Em um de seus livros, ele descreveu o lugar como “um projeto que negou pessoas o controle sobre suas próprias vidas”.

 

Na palestra em Quito, Richard Sennet foi radical: “Minha visão está longe da funcionalidade, da eficiência da cidade sem conflitos. Para mim, o grande desafio é criar cidades porosas, com ambientes abertos, vivos, onde as pessoas se sintam cosmopolitanas de fato”. De uma certa maneira, é o que concebeu o arquiteto chileno Alejando Aravena, Prêmio Pritzker de 2016, ao projetar conjuntos habitacionais iniciados com uma estrutura básica, que possibilita a complementariedade pelos próprios moradores, de forma personalizada, com o tempo.

 

PAISAGENS UNIFORMES – Ricky Burdett, moderador das palestras, ao apresentar ao público diapositivos com imagens de quarteirões de torres de Xangai, Luanda, Addis Abeba e Istambul, ilustrou o que Sennett criticou. “Essas imagens se repetem na maior parte das cidades do mundo. Elas mostram ruas sem vida, blocos de torres uniformes desconectados do resto da cidade. A Carta de Atenas levou a esse sistema fechado. Como contraponto surgiram os assentamentos informais, com habitações auto-construidas, que resultaram em cidades de enorme desigualdade”, como ele ilustrou mostrando uma imagem complementar de Caracas onde uma rodovia separa blocos de torres de favelas.

 

 

Ricky Burdett, urbanista. Foto: Habitat III Conference
Ricky Burdett, urbanista. Foto: Habitat III Conference

 

Saskia Sassen diz que, sem dúvida, entramos em uma nova era. “Os Documentos de Quito são um primeiro passo para reconhecermos a necessidade de uma cidade diversificada, como um sistema complexo, mas por natureza incompleto”.

 

Para exemplificar, na palestra que fez na Habitat III, ela utilizou um diapositivo com uma foto montagem que contrapõe em um único cenário as visões de uma enorme favela periférica e de um “skyline” de prédios corporativos. “São dois formatos de cidade que só vão crescer no futuro se nada mudar. Nenhum dos dois são cidades, são ambientes problemáticos que só crescem e não servem para nada, exceto para os interesses capitalistas pela terra urbana”.

 

“Falar de contemporânea é falar da perda massiva do habitat, resultado de um negócio multibilionário de investimento imobiliário de compra de grandes áreas urbanas já edificadas. Eles não compram prédios, compram terra urbana, pois o negócio não é feito para ocupação imediata, para usufruto próprio, e sim para estoque de terra a ser usada só no futuro. Portanto, o que tem valor na cidade é a terra, não o habitat”. Como exemplo, ela citou um caso recente de uma empresa de Cingapura que comprou uma enorme área em Detroit, boa parte ocupada por moradia de pobres, de forma silenciosa, sem dizer nada, não anunciar nada. Daqui a dez anos eles vão vender tudo, realizar seu lucro a custa da expulsão das comunidades existentes”.

 

Para Saskia Sassen, esse fenômeno afeta também as áreas rurais, cada vez mais urbanizadas, fazendo com que percamos o conhecimento de pessoas que por séculos sabiam manejá-las e nos suprir de alimentos.

 

Saskia Sassen, renomada socióloga. Foto: Habitat III Conference
Saskia Sassen, renomada socióloga. Foto: Habitat III Conference

 

“Como recuperarmos a cidade?”, pergunta a socióloga. Um caminho é pressionar os políticos e os empresários que amam suas cidades para que encontrem saídas para estancar esse processo de sequestro da terra urbana. Outro caminho é valorizar mais os bairros, que tem sobrevivido por séculos, ainda que muitas empresas contemporâneas a eles já desapareceram. “Precisamos de uma multinacional para tomar uma xicara de café no bar da esquina? Não podemos localizar a produção de computadores, mas no caso do café sim, assim como outras mudanças pequenas que juntas podem proteger ainda mais nossos bairros”.

 

Nesse aspecto, as palavras de Saskia Sassen lembram algo da canadense Jane Jacobs, autora de “Morte e Vida de Grandes Cidades”, ferrenha crítica das operações de renovação urbana em voga em Nova York nos anos 50 e 60 do século XX, famosa pela defesa do transito intenso de pessoas por espaços públicos, os “olhos das ruas” que garantiriam a segurança dos bairros. Richard Sennett, contudo, propõe uma visão estratégica da cidade além dos bairros. Para ele e Rick Burdett é preciso projetar “a totalidade da cidade”. Eles concordam que um planejamento de bairro, com a participação de seus habitantes, ajuda muito a cidade, mas não é o suficiente, pois muitos de seus problemas, como a mobilidade urbana, extrapolam uma comunidade.

 

Richard Sennett, renomado sociólogo. Foto: Habitat III Conference
Richard Sennett, renomado sociólogo. Foto: Habitat III Conference

 

BARCELONA – Médico de formação, político por vocação, o catalão Joan Clos, prefeito de Barcelona por duas vezes, participou do debate. E foi logo dando “graças a Deus” pela cidade não ter seguido com rigor o plano original proposto pelo engenheiro Ildefonso Cerdá, em 1860, muitas vezes citado como exemplo de planejamento urbano. O plano previa quarteirões com formatos internos uniformes.

 

“Essa uniformidade não resulta em cidades interessantes, apesar de voltar a estar em moda hoje”. O plano, diz ele, foi um malogro sob o ponto de comercial. Os moradores de Barcelona gostaram da ideia de uma cidade com desenho elegante, mas com estrutura não excessivamente determinado, o que contribuiu para a qualidade de vida e a atmosfera atrativa da cidade.

 

Para Clos, os planos não fazem as cidades, cuja verdadeira natureza é serem um artefato político decorrente da troca de ideias, em especial sobre os interesses sociais em conflito coexistentes em seus territórios. “As abelhas, também seres sociais, tem a colmeia por instinto. Nós temos a política. Por isso todas as colmeias são iguais, mas as cidades não são”.

 

Em sua visão, os planos diretores são apenas um exercício de zoneamento e o que as cidades precisam são de projetos urbanos. “Os projetos se preocupariam com a concepção do espaço público, a definição dos terrenos edificáveis e sua interelação”. No mais, a sociedade deve ficar livre para moldar a cidade.

 

“Imagino que os arquitetos e urbanistas vivem uma crise emocional enorme e permanente. Muitas vezes eles projetam lugares onde vão viver milhares de pessoas sem poder ouvi-las. Façamos a planificação aberta, não sejamos tão prescritores. Os modernistas, ainda que com boas intenções, geraram a prostituição da cidade e se prosseguimos assim nosso futuro pode ser tremendamente doloroso. O modernismo assumiu um modelo de cidade que seria para sempre, como se a cidade fosse uma pedra eterna. Ao contrário, ela tem que mudar, porque a sociedade também muda”.

 

O sucesso do planejamento de Barcelona, segundo ele, deve-se à sua vitória contra a ideia da “comunidade fechada”, que guardaria semelhança com as comunas da Idade Média que construíram muros para se protegerem de inimigos externos. “Hoje estamos construindo muros para nos protegermos de nossos vizinhos”.

 

Para Clos, “os condomínios fechados e monofuncionais são a prova do fracasso do urbanismo moderno. Falta estímulo para o tesouro da relação entre as pessoas e há uma redução do espaço público e de sua qualidade. Não queremos voltar no tempo, mas é preciso prestar atenção aos “espaços em branco” de Roma, onde as pessoas se reúnem e que existem apenas nas praças, mas também nos templos, por exemplo”.

 

“Todas as ideias sobre o planejamento urbano do século XX estão em crise. Eu tenho esperanças de que os Documentos de Quito sirvam como base teórica para um novo manifesto urbanístico do século XXI, contribuindo para a implementação da Nova Agenda, ainda que seu horizonte seja de apenas vinte anos”, afirmou Joan Clos, aproveitando para defender o documento oficial da Habitat III. “A Nova Agenda Urbana é um texto acordado entre todos os países membros da ONU e como se passa sempre com documentos assim, não tem grande qualidade literária. Mas temos que usá-lo pelo valor que ele tem em sua essência e a reflexão intelectual vai ajudar muito a moldar os novos processos de urbanização”.

 

Um processo que leve em consideração que hoje dois terços de nossas cidades – no Brasil apenas 15%, segundo pesquisa CAU/BR-Datafolha – são construídas sem técnica. “Não se trata de erradicar essa cidade informal, mas garantir a elas também o Direito à Cidade. Não é um destino fácil, mas possível”.

 

Júlio Moreno (de Quito)

 

Publicado em 24/10/2016

 

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