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“Imagine”, artigo do arquiteto e urbanista Washington Fajardo

Antonio tem 9 anos e pediu pra ir na padaria sozinho. Antonio é meu filho.

Até a padaria são 350 metros, cerca de sete minutos de caminhada até lá, mais sete para voltar, atravessando quatro ruas; três travessias são semaforizadas, duas delas muito movimentadas, uma delas é uma grande avenida.

Além dessa tarefa “urbana”, teria que pedir oito pãezinhos (nossa família é grande), 150 gramas de mortadela (eu adoro), escolher um suco de laranja, pagar e conferir o troco.

E depois regressaria. Mais 350 metros, três travessias semaforizadas, uma grande avenida, uma rua movimentada e finalmente subir nossa rua, que é uma ladeira.

Eu e minha mulher concordamos, sim, ele poderia ir. Após nossa aprovação, ele espertamente pediu para passar na banca de jornal e comprar um gibi (hábito adquirido com o pai).

Mais 120 metros, três minutos, atravessar novamente uma grande avenida e mais outra rua a cruzar. Escolher para si, escolher um gibi para a irmã (ela cobrou!) pagar, conferir troco, retornar.

Concordamos.

Ele saiu pela porta vestindo sua camisa da seleção brasileira e sandálias. Disse “tchau” com júbilo.

Seguida àquela imagem prematura da sua futura independência, passaram-se os mais longos minutos que eu e sua mãe vivenciamos, comparáveis aos minutos do seu nascimento. Era, de fato, um outro tipo de parto. Era sair do abrigo do lar e enfrentar a cidade, suas calçadas, o trânsito bruto, a congestão de informações, barulhos e fluxos. Tolos significando nada.

Como um casal de arquitetos, os assuntos urbanos estão sempre presentes nas conversas familiares. Como urbanista e alguém que participa da gestão urbana, os espectros complexos e as vicissitudes da tutela da cidade são frequentes no nosso lar, mas agora era carne da nossa carne, infantilmente saindo pela porta e dizendo “tchau” com alegria estampada.

Ele iria enfrentar a cidade que tanto contesto, materialização do ufanismo e pouco atenta ao cotidiano. Desafiaria o pensamento modernista que repetimos aborrecidamente sobre como as cidades brasileiras devam ser: ideologicamente utópicas mas abissalmente brutas na generosidade com o cidadão, onde cada detalhe é um espinho. Mas ele também me ameaçaria ao me obrigar a unir o estômago e o coração àquilo que racionalmente defendo.

Seguimos para a varanda que dá para a rua, e ficamos, eu e sua mãe, contando segundos e minutos. Um minuto. Ouviam-se as batidas dos corações. Meu deus, o que havíamos feito! Quatro minutos. Quanta irresponsabilidade! Dez minutos. Imagens do cotidiano bruto das cidades passavam pela cabeça. Xô! Quinze. Vinte minutos. Uma buzina feroz grita. Por que tanta demora? Uma gota de suor cai da testa e bate no chão. Vinte e cinco minutos. Nada. Vinte e seis: aparece uma camisa amarelinha subindo a rua. Era o Brasil subindo a ladeira! Era a seleção ganhando a Copa do Mundo no Maracanã!

Por que temos medo da cidade?

Vivemos no bairro do Humaitá, área com um dos melhores status quo urbano do Rio e do Brasil.

Imagine se conseguíssemos confiar no espaço público.

Imagine todas as crianças podendo ir à padaria, tendo como pagar, tendo o que comprar, sabendo fazer contas, lendo e interpretando o ambiente construído e tomando decisões.

Imagine um lugar onde possamos falar bom dia, boa tarde, boa noite a um desconhecido.

Imagine um espaço público onde crianças brancas, negras, ricas, pobres, na mais bela composição das suas diversidades, possam saber que estão seguras, que podem estudar e brincar juntas, e que terão acesso às mesmas oportunidades.

Imagine que o corpo frágil de uma criança possa ser protegido pelas calçadas, pelas ruas, pelas árvores, pelos prédios, pelos carros, pelo trânsito.

Imagine todas as crianças, todos os jovens, retornando aos seus lares em segurança.

Imagine que esse lugar, esse espaço público, define as nossas práticas e escolhas políticas.

Imagine os votos desses lugares.

Imagine os representantes eleitos por esses territórios.

Imagine um Congresso, um Senado, um Palácio do Planalto, um Judiciário constituídos de adultos que foram essas crianças, que foram respeitadas no espaço público e que elas, porque foram cuidadas pelas suas cidades, agora retribuem para que outras possam vir a ocupar seus lugares um dia.

Imagine o espaço público como uma riqueza a ser compartilhada e que nunca para de prover.

Imagine que esse tipo de lugar já existe, que está aí, para além da sua porta, que ele é imperfeito mas pode ser melhorado até alcançar a força da sua imaginação.

Imagine a urbanidade do pão nosso de cada dia como a polis em estado puro.

Imagine um feliz ano novo. E faça acontecer.

 

Publicado no O Globo, dia 26 de dezembro.

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