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Tem tanto terreno aí, gente! – artigo do arquiteto e urbanista Marcelo Ferraz

 

 

A tragédia que se abateu sobre Pernambuco nos últimos dias, mais precisamente na região metropolitana de Recife, não é novidade e não difere em suas causas de todas as outras que vem marcando com lama e mortes as últimas décadas. Petrópolis, Angra dos Reis e, mais recentemente, Minas Gerais e Sul da Bahia, somente para citar algumas delas. É um repeteco que choca momentaneamente e cai rapidamente no esquecimento que nos absolve e nos faz viver como se nada pudesse ser feito. Afinal, chuvas são fenômenos da natureza ou, para muitos, assunto de Deus. E nessa seara, nada a fazer.

 

Mas aqui não cabe falar do agravamento destes desastres cada vez mais frequentes e violentos como resultantes do aquecimento global ou do desmatamento da Amazônia. O problema (e a solução) são mais palpáveis e visíveis a olho nu.

 

Para certos políticos, cada tragédia é uma “oportunidade”. Trazem reparos e socorros públicos como esmolas aos frágeis abatidos, desabrigados e com fome, sem teto e sem a intimidade do lar, atributo quase sagrado na dignificação da vida urbana. Sem falar nos inúmeros casos de desvio de verbas emergenciais no caminho entre Brasília e capitais até as vítimas dos desastres.

 

Até quando vamos ignorar que o cerne do problema está na concentração e no domínio da terra por poucos, na “sagrada” propriedade privada do solo rural ou urbano? No caso das tragédias urbanas com mortes por deslizamentos e inundações, a realidade é escancarada: os pobres, que formam a grande maioria da população do Brasil, ocupam as sobras de terra, áreas impróprias e inabitáveis, pirambeiras, encostas, várzeas, lixões etc.

 

“Deus criou o mundo e o Diabo o arame farpado; Deus é o povo e o Diabo é a usura”, escreveu Glauber Rocha num texto de 1963 (“Memória de Deus e do Diabo nas terras de Cocorobó e Monte Santo”). Um brilhante e comovente libelo que chama atenção para a questão fundiária que segrega e define a vida e a morte na sociedade brasileira. A questão da propriedade da terra é um tabu que alimenta a desgraça que se abate sobre o Brasil desde tempos coloniais. Não fizemos até hoje a reforma agrária e muito menos a urbana, tão necessária em um país no qual 85% da população habita cidades. A grande maioria da população brasileira vive em condições deploráveis de conforto – mobilidade, acessibilidade, salubridade, sem falar na péssima qualidade construtiva e espacial da maioria das habitações. Ou são os novos “mocambos” periféricos de tijolos sem reboco, inacabados para sempre, ou os conjuntos habitacionais de casas e edifícios – os “pombais” que reduzem o indivíduo a um simples número a menos na conta do déficit habitacional, como se servisse para calar a boca: “aí está sua casa própria”.

 

E aqui vale um parêntesis: com os mesmos gastos que utilizamos para construir estes conjuntos habitacionais tenebrosos de quinta categoria, poderíamos fazer casas muito mais decentes e apropriadas. Trata-se de uma questão de projeto bom ou ruim.

 

As tragédias noticiadas todas as noites em nossos jornais da tv carecem de um mínimo de análise e crítica que cheguem perto das causas dos problemas. Mas não, no máximo criticam a falha da sirene que não tocou na hora em que o morro começou a trincar antes de cair e soterrar famílias. É inadmissível pensar em sirenes para anunciar a morte humana ao invés de construir habitações em lugares seguros e protegidos, sem riscos.

 

Nossas cidades são hoje amontoados de pessoas e famílias que formam comunidades em terras “possíveis” de ocupação, áreas inabitáveis, distantes dos centros, e que acabam sendo invadidas pelo desespero e pela busca da casa própria. Problemas que se avolumam com ocupações de mananciais, encostas, nascentes e servidões, sem que o poder público se movimente, a não ser após os sucessivos  desastres, com medidas de consolação como, muitas vezes, a reconstrução de habitações nas mesmas áreas atingidas, como que à espera da próxima catástrofe. Mas, na matemática exata e perversa do custo da terra, isso é o que sobra. Esse é o chão possível para se viver quando não há renda suficiente para a aquisição de algo melhor.

 

Não há solução possível sem que o estado – união, estados e municípios – assuma para valer o que manda a constituição ao garantir vida digna e segura para todos. É preciso aplicar o artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que trata da função social da propriedade, no combate à marginalização da moradia dos mais pobres e à gentrificação de bairros outrora populares. É mais do que hora de tocar nesse ponto nevrálgico: a propriedade é sempre privada, mesmo quando ociosa. Assim começaremos a rever a ocupação das terras urbanas em benefício dos mais pobres, em busca da construção de uma Cidade para todos, igualitária, e que promova a convivência. Sem riscos e tragédias previsíveis.

 

Em meio a tantos depoimentos desesperados nos noticiários dos últimos dias sobre a tragédia de Pernambuco, uma lúcida moradora afetada pela lama trouxe, em tom agudo e cristalino, o essencial da questão, o óbvio: “Tem tanto terreno por aí, gente!”. A terra não é de Deus e nem do Diabo, é do Homem, de todos os viventes.

 

Marcelo Ferraz

Junho de 2022

 

Marcelo Ferraz é sócio fundador (juntamente com Francisco Fanucci), do Brasil Arquitetura, escritório que vem acumulando prêmios nacionais e internacionais. Mineiro, formou-se pela FAU/USP e traz em seu currículo e prática projetual a notável contribuição de mestres como Lina Bo Bardi e Oscar Niemeyer, com quem teve o privilégio de trabalhar.

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